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domingo, 19 de setembro de 2010

Nietzsche, Schopenhauer e as tendências suicidas.*

       

     O  suicídio é uma das principais causas de morte da modernidade, principalmente entre adolescentes e adultos com menos de 35 anos de idade.[1] Fatores tais como  depressão, transtorno bipolar, esquizofrenia, alcoolismo e abuso de drogas, dificuldades financeiras e/ou emocionais  desempenham um fator significativo como causas para o suicídio.Há casos também de suicídios por conta de causas políticas ou por motivos religiosos.
      Quem nunca desejou "Morrer , dormir-mais nada-e com um sono supor que acabamos com a angústia e com os mil embates naturais que herda o homem com todas as suas limitações e fraquezas."? [2] Quem nunca perguntou a si se não seria melhor não ter nascido?
       Falando com uma moça sobre os efeitos do Clonazepan e da Fluoxetina que ambos havíamos tomado, ela me disse que tinha um certo interesse pela obra de Nietzsche mas que não o lera por conta de tendências suicidas latentes. Num aforismo específico do seu "Para além do bem e do mal." o autor fala que "A idéia do suicídio é uma grande consolação: ajuda a suportar muitas noites más".[3] Em outros escritos , afirma através de outro aforismo que "O suicídio é admitir a morte no tempo certo e com liberdade." 
       Em sua primeira obra publicada , a qual foi um de seus últimos escritos que li e uma das minhas prediletas, Nietzsche escreve: "Também a arte dionisíaca quer nos convencer do eterno prazer da existência: só que não devemos procurar esse prazer nas aparências, mas por trás delas.Cumpre-nos reconhecer que tudo quanto nasceprecisa estar pronto para um doloroso ocaso; somos forçados a adentrar nosso olhar nos horrores da existência individual - e não devemos toda via estarrecer-nos: um consolo metafísico nos arranca momentaneamente da engrenagem das figuras mutantes. (...) Apesar do medo e da compaixão,somos os ditosos viventes,não como indivíduos, porémcomo o uno vivente, com cujo gozo procriador estamos fundidos.[4]

        Nietzsche era entusiasta da obra de Arthur Shopenhauer que abordou,dentre outros assuntos,temas relacionados à morte e ao suicídio no seu "O mundo como vontade e representação." O pessimista Scopenhauer chegou a afirmar que "O suicídio é a positivação máxima da vontade humana." Com isso , ele tornaria claro que embora o homem não tenha o poder de interferência sobre o próprio nascimento, o mesmo não se daria com a sua morte. Com uma marreta invisível , esses dois alemães derrubam as colunas da fé num trabalho de Sísifo. Quanto mais chegamos perto das colunas, percebemos o quanto elas se encontram deterioradas ou até mesmo inexistentes. O problema é que se chegamos muito perto, corremos o risco de sermos soterrados e não conseguirmos nos desvencilhar dos escombros. O risco do soterramento só é minorado quando colocamos outra coisa no lugar da fé que possa evitar que o teto que sustenta as dores do mundo se rompa sobre nossas cabeças.
       O existencialismo me foi apresentado por volta de 1999 em um ônibus da Viplan que fazia o percurso do Plano Piloto para o Gama quando eu voltava da Universidade de Brasília. Um evangélico , por incrível que pareça, me indicou o "Assim falou Zaratustra" que eu pegaria emprestado da BCE da UnB e devolveria com 90 dias de atraso. O caminho da Universidade para o Gama está para mim como o caminho de Damasco estava para Saulo de Tarso. Se Saulo se tornou Paulo, eu me tornei um eu rumo a um Eu com "E" maiúsculo.Ao contrário do que muitos pensam, a obra dos alemães  supracitados , em vez de nos dar razões para morrer, na verdade nos dá razões para perseguir e agarrar a vida como uma das coisas mais valiosas do mundo.      
       A lição que eu tiro da obra dos grandes alemães  é a mesma lição que eu absorvo do Capítulo 9 do Eclesiastes , tão negligenciado pelos religiosos: "  Para aquele que está entre os vivos há esperança; porque mais vale um cão vivo do que um leão morto. Porque os vivos sabem que hão de morrer, mas os mortos não sabem coisa nenhuma, nem tampouco terão eles recompensa, porque a sua memória jaz no esquecimento. Amor, ódio e inveja para eles já pereceram; para sempre não têm eles parte em coisa alguma do que se faz debaixo do sol. Vai, pois, come com alegria o teu pão e bebe gostosamente o teu vinho, pois Deus já de antemão se agrada das tuas obras. Em todo tempo sejam alvas as tuas vestes, e jamais falte o óleo sobre a tua cabeça. Goza a vida com a mulher que amas, todos os dias de tua vida fugaz, os quais Deus te deu debaixo do sol; porque esta é a tua porção nesta vida pelo trabalho com que te afadigaste debaixo do sol. Tudo quanto te vier à mão para fazer, faze-o conforme as tuas forças, porque no além, para onde tu vais, não há obra, nem projetos, nem conhecimento, nem sabedoria alguma. Vi ainda debaixo do sol que não é dos ligeiros o prêmio, nem dos valentes, a vitória, nem tampouco dos sábios, o pão, nem ainda dos prudentes, a riqueza, nem dos inteligentes, o favor; porém tudo depende do tempo e do acaso"[5]
       Num dos trechos mais emblemáticos sobre a existência , Nietzsche diz:  " O erro sobre a vida necessário à vida. — Toda crença no valor e dignidade da vida repousa sobre pensamento impuro; só é possível porque a simpatia pela vida e sofrimento universal da humanidade é muito francamente desenvolvida no indivíduo. Mesmo os homens mais raros, que de modo geral pensam além de si mesmos, não captam no olho esse vida universal, mas partes delimitadas dela. Quem sabe dirigir seu olho principalmente a exceções, quero dizer, aos talentos superiores e às almas ricas, quem toma seu surgimento por alvo de todo o desenvolvimento do mundo e se alegra com suas obras, pode então acreditar no valor da vida, porque, com efeito, deixa de ver os outros homens: portanto, pensa impuramente. E, do mesmo modo, quem capta no olho todos os homens, mas só leva em conta neles um gênero de impulsos, os menos egoístas, e os desculpa no tocante aos outros impulsos: pode então, mais uma vez, esperar algo da humanidade em seu todo e nessa medida acreditar no valor da vida: portanto, também nesse caso, por impureza de pensamento. Mas quem procede de um modo ou do outro é sempre, ao proceder assim, uma exceção entre os homens. Ora, precisamente a maioria dos homens suporta a vida sem resmungar demais, e com isso acreditam no valor da existência, mas precisamente porque cada qual só quer e afirma a si mesmo, e não sai de si como aquelas exceções: todo extrapessoal, para eles, ou não é perceptível ou o é, no máximo como uma fraca sombra. Portanto, somente nisto repousa o valor da vida para o homem comum, cotidiano: ele se dá mais importância do que ao mundo. A grande falta de fantasia de que sofre faz com que não possa sentir-se dentro de outros seres e, por isso, ele toma parte o menos possível em seu destino e sofrimento. Quem, ao contrário, pudesse efetivamente tomar parte neles haveria de desesperar do valor da vida; se conseguisse captar em si a consciência total da humanidade e senti-la, ele sucumbiria, amaldiçoando a existência — pois a humanidade no todo não tem nenhum alvo e, conseqüentemente, o homem, ao considerar o decurso inteiro, não pode encontrar nele seu consolo e trégua, mas seu desespero. Se vê em tudo o que faz a falta de finalidade última do homem, seu próprio agir adquire a seus olhos o caráter do esbanjamento. Mas sentir-se, como humanidade (e não somente como indivíduo), tão esbanjado como vemos a florescência isolada ser esbanjada pela natureza, é um sentimento acima de todos os sentimentos. — Mas quem é capaz dele? Certamente apenas um poeta: e poetas sabem sempre consolar-se. " [6]
          Nietzsche afirma através de sua obra que não devemos ter vergonha do passado , de termos sido religiosos, ignorantes, superticiosos ou crédulos porque foi através dessas práticas , ignorâncias, supertições e  crenças que conseguimos chegar ao que somos hoje e que devemos fazer uso de tudo isso para chegarmos mais longe´.Shopenhauer, por sua vez, fala que superestimamos as dores em detrimento dos prazeres. Fala também que nunca notamos a sanidade do corpo mas que sempre lembramos onde o sapato aperta.
        Como uma nave que perde os estágios que serviam como reservatório, deixamos para trás  um peso desnecessário que nos foi útil quando estávamos próximos do chão. O alemão bigodudo também fala que muita gente que morreu precocemente não teve a oportunidade de viver os infortúnios que a gente tanto reclama. Devemos , portanto, nos regozijar por termos a oportunidade de termos experiências que homens de várias épocas e várias gerações não puderam ter, visto que até mesmo as adversidades modernas sofrem a incorporação de novos atributos e peculiaridades. Deste modo, não vejo na obra dos grandes alemães uma "apologia" ou indução ao suicídio. Encaro tudo isso mais como um "preconceito religioso". A descrença no transcedente deveria, pelo contrário, mostrar ao homem que a vida é única e que momentos felizes e infelizes são transitórios. Se essas conclusões não são suficientes para mudar o estado de consciência, quem sabe um medicamentosinho não resolva.
       Bebamos e comamos (no Outback , preferencialmente) pois amanhã morreremos.


*em homenagem à farmacêutica G.R.
J.T.




      





[1]Understanding Suicidal Behaviour. Leicester: BPS Books, 29 Jan 2000. p. 33–37.
[2]Shakespeare, William. Hamlet. Ato 3 .Cena I
[3] Nietzsche.Para Além do Bem e do Mal. Aforismo 157. Companhia das Letras
[4] O Nascimento da Tragédia. Capítulo 17. Companhia das Letras.
[6]Nietzsche.Humano, demasiado humano, 1878, primeiro volume, capítulo um,§ 33.Companhia das Letras
[5] Eclesiastes 9:4 a 11

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